Se nas postagens anteriores eu trouxe a diretriz britânica sobre o diagnóstico ecocardiográfico de amiloidose cardíaca, agora trago um artigo de revisão de autoria brasileira com análise crítica desses achados.
Como toda e qualquer doença, o diagnóstico em fase inicial tem impacto prognóstico relevante. Quando pensamos em amiloidose cardíaca, a ecocardiografia apresenta baixa especificidade, nos estágios iniciais, na diferenciação desta doença com outras condições que cursam com o fenótipo hipertrófico.
O artigo, portanto, faz uma análise de diferentes parâmetros ecocardiográficos em relação ao seu valor diagnóstico no contexto da amiloidose cardíaca.
Como já mencionado na postagem anterior, um aumento ≥ 12 mm na espessura diastólica das paredes do ventrículo esquerdo (VE), na ausência de outra condição clínica que a justifique, deve levantar suspeita em relação a presença de amiloidose cardíaca. Nas fases iniciais da doença, essa “pseudohipertrofia” pode ser o único achado ecocardiográfico presente.
Por outro lado, porém, uma espessura diastólica normal das paredes ventriculares não descarta amiloidose cardíaca. Desta forma, o aumento da espessura da parede é um achado não específico e requer uma interpretação clínica cuidadosa.
À medida em que a doença vai progredindo, achados adicionais como aumento da ecogenicidade do miocárdio, aumento da espessura das paredes do ventrículo direito, espessamento valvar e do septo interatrial, aumento biatrial e presença de derrames pleural e/ou pericárdico devem chamar a atenção para o diagnóstico desta doença.
Vale lembrar que o aumento da ecogenicidade do miocárdio é achado não específico e com pouca sensibilidade para o diagnóstico de amiloidose cardíaca, sendo observado em outras condições como doença renal crônica e outras cardiomiopatias infiltrativas. No contexto de amiloidose cardíaca, deve ser valorizado quando associado a redução do strain global longitudinal do VE.
Já nas fases tardias, uma cardiomiopatia restritiva infiltrativa se desenvolve.
Apesar da fração de ejeção (FE) do VE usualmente se manter preservada até que estágios mais avançados da doença se estabeleçam, a função longitudinal (strain) já se mostra reduzida desde o início da doença.
O Doppler tissular (TDI) pode ajudar na detecção de disfunção sistólica ou diastólica antes que a FEVE comece a cair. As onda s´, e´ e a´ habitualmente estão diminuídas na amiloidose cardíaca.
O sinal do “triplo 5” consiste na presença de velocidades < 5 cm/s de todas essas ondas do Doppler tissular (s´, e´ e a´) e é um achado altamente sugestivo de amiloidose cardíaca, porém é habitualmente observado apenas em estágios mais avançados da doença.
A infiltração do ventrículo direito (VD) é achado comum nesses pacientes, levando a hipertrofia desta cavidade (aumento da espessura da parede livre do VD > 7 mm*, segundo esta referência) muitas vezes associada a disfunção sistólica, evidenciada pela redução do TAPSE e da onda s´ (< 10 cm/s).
*Aumentos > 5 mm da parede livre do VD já são suficientes para classificá-lo como hipertrófico.
Disfunção diastólica é um marco na amiloidose cardíaca. Nos estágios iniciais, observa-se disfunção graus I ou II. Relação E/e´ > 13 é um dos achados mais precoces. A presença de onda A reversa na análise do fluxo de veia pulmonar pode sugerir aumento da pressão diastólica final do VE.
O padrão restritivo, por sua vez, tende a ser observados nas fases tardias da doença e ocorre em razão da rigidez miocárdica pela infiltração amiloide. Caracteriza-se pela relação E/A > 2,0, velocidades reduzidas de ondas e´ (usualmente < 6 cm/s) , E/e´ > 15, redução do tempo de desaceleração (TDA) do fluxo mitral (inclusive com impacto prognóstico quando < 150 ms) e dilatação de ambos os átrios.
Átrios aumentados, com pouca ou nenhuma mobilidade, com aspecto descrito em “olho de coruja ” (owl´s eye) são comuns na amiloidose cardíaca e reflete o aumento das pressões de enchimento.
A infiltração amiloide pode causar espessamento do septo interatrial (> 5 mm durante a diástole), bem como das valvas aórtica, mitral e tricúspide. Apesar de não específicos, estes achados devem levantar a suspeita de amiloidose cardíaca.
Derrame pericárdico leve é comum e pode estar presente em mais de 50% dos pacientes.
O índice de contração miocárdica (stroke volume/volume VE) avalia a capacidade contrátil em pacientes com amiloidose cardíaca e pode ser útil na diferenciação daqueles com hipertrofia ventricular esquerda causada por outras condições. Em pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEp) induzida por condições metabólicas ou inflamatórias sistêmicas, a relação costuma ficar entre 30-45%. Já nos pacientes com cardiomiopatia hipertrófica, o valores ficam entre 35-45%, enquanto que nos casos de amiloidose cardíaca, entre 20-30%.
Essa medida mostrou uma alta acurácia diagnóstica nos pacientes com amiloidose TTR (AUC = 0.80). À medida em que a infiltração miocárdica progride, há um aumento da massa miocárdica e diminuição da cavidade ventricular esquerda, levando a uma redução significativa do volume diastólico final do VE, deixando o débito cardíaco altamente dependente da frequência cardíaca. Ainda, com a infiltração valvar e presença de regurgitação mitral e tricúspide, o volume ejetado torna-se ainda mais reduzido.
Dentro os parâmetros que não avaliam deformação miocárdica, este índice parece apresentar a melhor performance diagnóstica, pelo menos nos pacientes com amiloidose TTR.
A análise da deformação miocárdica, pelo strain, é fundamental nesses pacientes. O strain global longitudinal (SGL), parâmetro mais robusto e amplamente validado em estudos clínicos, se altera antes da mudança na FE. Isso ocorre pelo fato de que as fibras longitudinais estão localizadas no subendocárdio, região altamente vascularizada e que é afetada de forma mais precoce no contexto de isquemia ou outras injúrias miocárdicas.
O SGL, portanto, é um marcador de disfunção subclínica e pode se apresentar reduzido antes mesmo de existir aumento da espessura das paredes miocárdicas na amiloidose cardíaca. Quando comparados com pacientes com cardiomiopatia hipertrófica e espessura diastólica das paredes similar, pacientes com amiloidose cardíaca apresentaram valores menores do SGL.
Embora classicamente relacionado a esta doença, o padrão de preservação apical não é patognomônico da amiloidose cardíaca, estando presente em apenas 1/3 desses pacientes e em aproximadamente 1/10 da população geral.
Outro parâmetro derivado do SGL é o valor do strain apical dividido pela soma do strain dos segmentos basais e médios (relative regional strain ratio). Quando ≥1, apresenta sensibilidade de 93% e especificidade de 82% na diferenciação entre amiloidose cardíaca e outras cardiomiopatias com fenótipo hipertrófico.
Em 2013, Liu et al observou que o strain longitudinal septal apical-base > 2.1, associado com TDA < 200 ms, ajuda na diferenciação da amiloidose cardíaca de outras causas de hipertrofia concêntrica do VE, tais como hipertensão arterial isolada, doença de Fabry e ataxia de Friedreich.
Já em 2016, Pagourelias et al introduziu um novo índice que consiste na relação FEVE/SGL e que se apresentou significativamente maior entre os pacientes com amiloidose cardíaca. O valor de corte sugerido foi de > 4.1 para diferenciar amiloidose cardíaca de cardiomiopatia hipertrófica (AUC = 0.91).
Neste mesmo estudo, os autores compararam a análise de deformação miocárdica em 40 pacientes com diagnóstico confirmado de amioloidose cardíaca, 40 pacientes com cardiomiopatia hipertrófica e 20 com hipertensão arterial. Uma relação FEVE/SGL > 4.1 mostrou maiores valores de acurácia diagnóstica para amiloidose cardíaca (sensibilidade 89,7% e especificidade 91.7%). Esta relação se manteve como melhor parâmetro diagnóstico, no estudo, independente do tipo de amiloidose cardíaca.
Outro estudo com 100 pacientes mostrou que o strain septal apical-basal > 2.1 (AUC = 0.72) e a relação FEVE/SGL (AUC = 0.72) melhoraram o poder discriminatório da amiloidose comparada com a utilização do padrão de preservação apical (AUC = 0.66).
A disfunção do ventrículo direito (VD), por sua vez, pode ocorrer antes mesmo que haja disfunção ventricular esquerda. Redução do TAPSE e do strain de parede livre do VD tem se associado a pior prognóstico.
Alguns scores são sabidamente conhecidos e o IWT score (espessura relativa, E/e´, TAPSE, SGL, Strain septal apical-basal) oferece uma acurácia diagnóstica elevada para pacientes com amiloidose TTR quando ≥ 8 pontos (AUC = 0.87). Já nos pacientes com amiloidose AL, o AL score (espessura relativa, E/e´, GLS, TAPSE) ≥ 5 pontos mostrou um alto poder discriminatório (AUC = 0.90).
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.