A doença de Anderson Fabry ou doença de Fabry é uma doença de armazenamento lisossômico rara, um erro inato do metabolismo dos esfingolipídeos ligada ao X, causada pela deficiência parcial ou completa da enzima alfagalactosidase A (α-GAL).
Por apresentar espectro clínico variável (dor neuropática, angioqueratomas, sintomas gastrointestinais, hipohidrose, alterações na córnea), pode ser de difícil diagnóstico nas fases iniciais, retardando o emprego de terapia adequada. Por ser uma doença de depósito, pode afetar diversos órgãos, com maior destaque para os sistemas cardiovascular, renal e neurológco.
A ecocardiografia continua sendo um método confiável para o diagnóstico do envolvimento cardíaco na DF. Apesar da hipertrofia ventricular esquerda ser a grande marca desta doença, outras alterações estruturais cardíacas também já são amplamente reconhecidas como parte do acometimento cardíaco, a citar aumento atrial, doença valvar, dilatação de aorta ascendente e diminuição subclínica das funções atrial e ventricular.
HIPERTROFIA VENTRICULAR ESQUERDA: é a grande marca da DF e resulta da deposição de glicolipídeos nas células musculares cardíacas. O aumento da espessura das paredes ventriculares se dá de forma concêntrica, contudo outras formas de apresentações são possíveis, como por exemplo hipertrofia septal assimétrica, hipertrofia excêntrica e hipertrofia apical isolada (o que pode levar a erro diagnóstico).
Em um série com pacientes inicialmente diagnosticados com miocardiopatia hipertrófica (MCH), 3.9% a 12% foram posteriormente diagnosticados com DF. Outros estudos mostraram que cerca de 10% dos pacientes que apresentam hipertrofia ventricular de causa não aparente (hipertensão arterial, estenose aórtica …) são portadores de DF.
Se não tratados (reposição enzimática), o aumento da massa e da espessura da parede ventricular tende a apresentar caráter progressivo à medida em que a doença avança. Observa-se uma maior incidência em pacientes do sexo masculino, assim como um maior grau de hipertrofia quando comparados com pacientes do sexo feminino da mesma idade.
A presença de hipertrofia ventricular esquerda está diretamente associada a um aumento de morbimortalidade cardiovascular. Em estudo com 714 pacientes com DF, hipertrofia ventricular esquerda se associou a maior incidência de sintomas cardíacos, arritmias e doença valvar. Em outra análise com 2.869 pacientes, foi encontrada associação de hipertrofia ventricular esquerda com infarto agudo do miocárdio (IAM), insuficiência cardíaca (IC) e morte cardiovascular.
Embora possível, a presença de não compactuação miocárdica ou aneurisma ventricular esquerdo são consideradas manifestações incomuns da DF.
SINAL BINÁRIO: existem na literatura descrições de um aspecto binário do endocárdio como sendo típico desses pacientes ao ecocardiograma. Pieroniet al. descreveram esse aspecto duplo do endocárdio como uma hiperecogenicidade do endocárdio e um espaço hipoecogênico entre o endocárdio e o miocárdio, principalmente, na região septal apical.
Hoje já se sabe que esse aspecto não pode ser considerado um marcador confiável dessa doença (sensibilidade de 15,4-28% e especificidade de 73.3-80%), sendo encontrado em outras causas de hipertrofia mais comuns que a DF. Em estudo prospectivo, apenas 20% dos pacientes com DF apresentavam este aspecto à ecocardiografia.
MÚSCULOS PAPILARES PROEMINENTES: o aumento da espessura e da ecogenicidade dos músculos papilares são achados frequentes na DF e, usualmente, se associam a anormalidades da valva mitral.
Quando comparados com pacientes com hipertrofia ventricular esquerda (n = 101 pacientes) de etiologias variadas, incluindo 28 com DF, 30 com ataxia de Friedreich, 34 com hipertensão arterial e 9 com amiloidose cardíaca, comparando com 50 pacientes saudáveis (controle), o grupo com DF apresentou, de forma significativa, músculos papilares com área maior que o grupo com pacientes com amiloidose e ataxia de Friedreich. Quando comparados com pacientes hipertensos, os com DF apresentaram músculos papilares de maiores dimensões. Vale ressaltar que a hipertrofia isolada de músculos papilares não é um achado específico de DF.
CÂMARAS DIREITAS: a hipertrofia do ventrículo direito (VD) normalmente se associa a hipertrofia ventricular esquerda, estando presente em 31-71% dos pacientes com DF. A prevalência tende a aumentar com a idade e, diferentemente do acometimento do ventrículo esquerdo (VE), há acometimento igual entre homens e mulheres.
A função sistólica do VD tende a ser preservada em uma taxa superior quando comparado com pacientes com amiloidose cardíaca em estágios semelhantes de doença. Contudo, disfunção sistólica (47%) e diastólica podem ocorrer em estágios avançados da DF. Em uma análise com 129 pacientes 46 apresentaram hipertrofia do VD e, destes, 13 evoluíram com disfunção ventricular direita. Uma espessura > 7 mm da parede livre do VD se associa a disfunção subclínica, detectada através da análise de strain do VD.
AUMENTO ATRIAL: a análise histológica já comprovou acúmulo de glicolipídios nas células atriais, levando ao aumento destas cavidades e predispondo a arritmias atriais. A prevalência de aumento atrial é estimada em 30%.
Habitualmente o aumento do átrio esquerdo (AE) é leve a moderado e, quando presente, o aumento importante normalmente se associa a regurgitação valvar mitral significativa.
ACOMETIMENTO VALVAR: o depósito glicolipídico também ocorre no tecido valvar, levando a espessamento (57%) e redundância (47%) dos folhetos valvares.
As regurgitações mitral e aórtica são frequentemente relatadas, sendo na grande maioria das vezes de grau leve a moderado. Insuficiência valvar significativa com necessidade de intervenção é considerada um achado raro.
DILATAÇÃO DE AORTA: a dilatação aórtica é atribuída às alterações degenerativas na camada média e decorrente do depósito glicolipídico em excesso. A dilatação da raiz de aorta ocorre mais frequentemente nos homens e sua prevalência aumentada de acordo com a idade.
Normalmente, pacientes que apresentam raiz de aorta com diâmetro > 40 mm possuem outras anormalidades cardíacas, como hipertrofia ventricular esquerda, sugerindo uma associação entre a dilatação da raiz de aorta e estágio avançado da doença.
Em um estudo com 106 pacientes, foi observado a presença de dilatação do seio de valsalva em 32,7% e de aorta ascendente em 29,6% dos pacientes homens. Já entre pacientes do sexo feminino, os valores foram de 5.6% e 21,1% respectivamente.
DISFUNÇÃO VENTRICULAR ESQUERDA: a função sistólica do VE geralmente está preservada na DF. Contudo, em fases avançadas da doença é possível que haja disfunção ventricular esquerda.
Aqui vale destacar que, diferentemente do que ocorre na amiloidose cardíaca, a miocardiopatia restritiva é menos comum (sendo observada apenas em casos muito avançados da doença). Tal diferença pode se justificar pela forma de infiltração: na amiloidose cardíaca, a deposição das fibrilas amilóides ocorre no interstício, enquanto que na DF a infiltração glicolipídica é intracelular.
TERAPIA DE REPOSIÇÃO ENZIMÁTICA: as indicações cardíacas de terapia de reposição enzimática na DF incluem:
- Índice de massa do VE > 20% da faixa de normalidade ou aumento da massa do VE >ou igual 5 g/m²/ano com 3 medidas mínimas durante um ano;
- Aumento da espessura da parede do VE (> 12 mm no homem e > 11 mm na mulher);
- Disfunção diastólica grau II ou III;
- Redução do strain rate ou do strain radial do VE;
- Aumento do diâmetro do átrio esquerdo (> 40 mm, volume indexado > 34 ml/m²);
- Regurgitação valvar mitral ou aórtica moderada a importante.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.